17 Setembro  2021

MORADA

Tinha cinco anos. A ilha começava para mim. Eu vinha do Porto, da floresta dos Carvalhos. Houve muitas moradas. Primeiro Câmara de Lobos. Depois o Funchal. Subia o Beco dos Frias, com o coração de fora, para a vida introspectiva da casa. Nessa altura, a rua era um beco sem saída no sopé da fortaleza de São João. A casa estava no meio de baldios. Ao fundo da rua, nasceu Herberto Helder, mas nessa altura o Funchal era ainda, para mim, um poema descontínuo. Havia um pátio de calhau rolado na casa do Beco dos Frias onde estendia os jornais. As notícias a rolarem pelos meus olhos. Eu entrava e saía por janelas. As portas nunca foram para as crianças. Das portas não se vê o mundo, penso agora. Mas na altura as coisas não eram claras e os joelhos ficavam esfolados. Hoje ainda doem sem saber muito bem como. É enorme a diferença entre as memórias reais e as imaginadas, entre a realidade e as notícias da realidade. Onde começam umas e acabam as outras? Em que babujinha? 

Descia a rua de S. Pedro, a rua da Carreira, parava no Pátio. Havia mesas e cadeiras de ferro onde era possível passar tardes imensas a ler. Havia uma rota que incluía atravessar grandes e pequenas pontes sobre as três ribeiras, atravessar largos e praças e ouvir sempre, mas sempre, o homem do acordeão onde quer que ele estivesse. A usura deste amor só um cego poderia vê-la. Seguia depois até à Avenida do Mar. Ia ter com os amigos aos cafés da Marina do Funchal. Havia lugar no coração para acolhê-los a todos, com entusiasmos excessivos, no riso quotidiano de viver sem ser por nada. Havia uma certa violência cuja ternura se perdeu. Como se perdem amigos, lugares e súbitas canções. Depois subia por outro caminho para casa. Parava sempre na loja de discos da rua das Pretas. “And you want to travel with her, and you want to travel blind”. Cacos sonoros. Não cacofonias. Pedaços de sons quebrados. Os restos que ficam de uma canção de Leonard Cohen ouvida pela primeira vez numa loja de discos. Aos sábados ia à missa na igreja de Santa Clara acreditando que “ainda era possível encontrar Deus pelos baldios”, como escrevia Tolentino Mendonça. Se eu fosse Deus …. – convidava muitas vezes Cohen a completar este pensamento. Era um beco sem saída e depois transformou-se numa rua. A rua dos Frias. Uma outra maneira de dizer que todos os becos vão dar a Roma! Quando a única fronteira é a das águas onde começa a ilha? Nos mergulhos no Lido, na Praia Formosa. Mergulhar e submergir de olhos abertos. Fios de sal a escorrer pela retina. Foi no Funchal que conheci o mundo. Em voos curtos ou longos. Ainda hoje há uma vontade inexplicável de estar aí. Ainda estranho muito ter crescido. Crescer não parece grande coisa. Aprendo mais do que tenho direito a saber. Hoje sou Levada.

Alexandra Sofia Costa

© Sandra Gonçalves

8 Setembro  2021

FUNCHAL

Lembro de assistir aos debates do festival no Teatro Municipal e conversar com o vendedor dos livros de uma editora pequena. De não perder um encontro, uma fala, um pensamento. Lembro de ficar encantando com a mesa de jovens poetas, aprendi muito com a inquietação deles e suas performances. Lembro da Livraria Esperança, de passar um dia inteiro lá, lendo poesia, folheando álbuns de imagens. Lembro de não me sentir estrangeiro e ter passado as melhores horas da manhã num café do hotel em anos. Lembro de falar na faculdade e escutar coisas sobre a história de Portugal que eu nunca tinha escutado. Lembro de estar mal resolvido do Rio de Janeiro e ficar pensando no Rio de Janeiro (pensar que o Centro de Funchal fosse Botafogo e desistir).

De me perder dentro de um supermercado dentro de shopping procurando vinho verde. Lembro de uma conversa noturna com um amigo. Lembro de um show de uma cantora brasileira que tem a mesma idade que eu. Lembro de procurar toalhas de mesa bordadas para dar de presente para minha mãe. Lembro de rir sozinho, de recusar os convites para conhecer as praias da ilha porque viajei com trabalho atrasado e precisei ficar mais tempo do que gostaria no meu quarto de hotel diante do meu computador escrevendo. Lembro das amizades que fiz. Lembro das perguntas mais inteligentes feitas por um jornalista sobre o meu trabalho. Lembro de um grande poeta português, um médico, gostar dos meus poemas (do poema Se o mundo é redondo que está no livro lançado em Lisboa em 2020 pela Gato Bravo). Lembro de querer voltar porque a cidade fez sentido e combinou com minha estranheza de poeta. Lembro de ser poeta com outras poetas e outros poetas. Lembro dos sorvetes que comi enquanto caminhava sozinho pela cidade à tarde depois do almoço. Lembro, sobretudo, do mar e das respostas que ele me deu. Lembro de fotografar uma flor no Parque de Santa Catarina e de pensar no amor e na morte. Lembro de usar sapato e não tênis. E do vento quando nas noites eu pensava que todas as luzes tinham sido apagadas. Um farol que havia, e eu não encontrava.

*

MADEIRA

regamos a loucura, a bravura
fazemos andar nossa loja de
ossos, nossa fronteira tombada
sobre um fictício carro de gelo

regamos com frio nossas palavras
e deixamos seu leilão, suas roletas
polinizarem o papel
de nossas cartas

vestir nossos peitos
com o molde
e o braseiro sempre mudo
dos homens-placas

nossa voz que recua
porque recua nossa festa –
então sobe a feira agressiva dos nós
que sustentam o mar no longe

nosso pescoço urna grega
os braços que não se fecham
e este silêncio
– molhado está o tecido

no azul menor que descosturou
e descostura
essa lentidão de chegada
esse primeiro véu

água que não é corpo
água que forma as palavras
dos pedidos e do socorro
apesar do frio e do sal

nosso corpo será regar
achar túneis no funcionamento
desse carro – nosso corpo
esponjas para a madeira

ar (necessário) escapando
para encontrar no trânsito
a chuva – batucar de asas
penas verticais

como só teimaria
a madeira das
árvores e das ilhas –
casais assim voltando

nós porta-fogo
(chance vida)
de oceano engolido
( n )uma árvore

Paulo Scott

1 Setembro  2021

UM OLHAR
SOBRE O FUNCHAL

Há muitos anos pouco mais sabia sobre o Funchal para além de que era a capital do arquipélago da Madeira, que havia o bordado, o vinho e muitas flores e que por aqui passavam os navios da emigração e os que iam a caminho das colónias. E não tinham, e continuam a não ter, saído da memória umas encantadoras botas de vilão que me faziam crescer água na boca usadas por umas gémeas que tinham sido minhas colegas na escola primária da Rua Braamcamp Freire, em Lisboa.

Os amigos do namorado que mais tarde vim a conhecer na faculdade brincavam comigo e envolviam-me nas partidas que faziam a todos os que não eram ilhéus. Desde ‘comer’ cana-de-açúcar, até à necessidade de autorização de uma delegação de residentes para poder entrar na ilha, passando pela auto-estrada para Marrocos (só depois percebi que os ‘candeeiros’ eram as luzes dos barquinhos na pesca da pota) – caí em algumas. Até que vim.

Foi em Agosto de 1968 que pela primeira vez fiz a curva do Pináculo, vinda de Santa Cruz pela velha Estrada do Aeroporto. Era um daqueles fins de tarde em que a luz do poente espalha um tom ligeiramente acobreado e quente sobre a cidade, fazendo mudar de cor as casas e as coisas. Lá em baixo, o Funchal parecia um ovo aconchegado no ninho formado pelas montanhas; à esquerda, a Pontinha facilitava a ligação ao mar imenso e tranquilo que se oferecia como porta de saída a quem se quisesse aventurar por outros caminhos.

Do avião tinha avistado o Porto Santo e foi nessa altura que fiquei a saber que ao espaço de mar entre as duas ilhas se dá o nome de Travessa. As travessas que conhecia eram pequenas ruas que ligavam ruas mais importantes e por onde muitas vezes se encurtava caminho. Fiquei a aprender que há travessas no mar. Mas ao falar de travessas em terra ou no mar, fica sempre um sentido comum de ligação, de acessibilidade.

A descida pela Conde de Carvalhal, numa camioneta que rangia a cada curva, deixou-me a marca de uma cidade de casas com jardim cheias de plantas e flores, muitas das quais nunca tinha visto. Anos mais tarde haveria de me deliciar com uma Avenida Arriaga florida de jacarandás.

Vinda de Lisboa, esta cidade era uma caixinha de surpresas. De muitas surpresas, que fui descobrindo guiada, então, pelo namorado.

Com um traçado assente fundamentalmente nas suas três ribeiras, a cidade baixa deixava-se ver nos seus edifícios emblemáticos como a Sé, a Igreja do Colégio, os fortes de S. Lourenço e Santiago, o Teatro Baltazar Dias, a Alfândega, o Mercado dos Lavradores, a velhinha pastelaria Felisberta, o Museu de fotografia Vicentes, o de Arte Sacra e o Municipal, a Quinta das Cruzes, a sobranceira fortaleza do Pico. A meia encosta, a Igreja do Monte sempre me pareceu contemplar o horizonte.

A velha muralha que partia do Pico, envolvendo e marcando o traçado da cidade medieval, ainda se deixava (e deixa) ver na Rua Major Reis Gomes e no Campo da Barca, na margem direita da ribeira de João Gomes; pelo caminho, entre a foz da ribeira de Santa Luzia e a de João Gomes, poucos vestígios assinalam a velha Fortaleza de S. Filipe e já na Zona Velha, perto do Forte de Santiago, ainda marcavam (e marcam) presença restos da muralha de proteção ao forte. Estas memórias que são testemunho da fortificação da cidade datam do século XVI/XVII.

E as casas. Tão impressionantemente variadas. Das pequenas, térreas ou de sobrado, a revelar as fracas condições financeiras dos seus habitantes até às vivendas de uma classe média alta da Estrada Monumental, passando por pormenores deliciosos como adornos de telhados e varandas, os fornos – ainda hoje presentes em uma ou duas casas do Bairro de Santa Maria, as casinhas de prazer das habitações mais abastadas muitas em fantásticas quintas madeirenses.

E havia também os seus espaços – o Almirante Reis, a Zona Velha a precisar de cuidados, a Praça do Município, a Avenida Arriaga e a do Mar com o bonito cais e os seus carros de bois, a Praia Formosa (com areia a contrastar com todas as outras de calhau rolado), Santa Catarina e a sua abertura sobre o porto com as Desertas ao fundo, os picos de S. Martinho todos em fiada ligando o mar à serra, as Minas Gerais (da casa de chá – onde esta bebida parecia falar inglês, ao supermercado – o mais moderno de então). E no ano seguinte, creio, assisti pela primeira vez ao espectáculo do fim do ano.

A cidade era marcada por um certo ar cosmopolita em consequência da visita de milhares de estrangeiros, uma vez que o turismo já tinha uma presença muito significativa, apesar de ter pensado, na altura, que era um turismo muito ‘sério’, com pessoas bem-postas e de certa idade. Não se tratava ainda do turismo de gente muito mais nova e com outros interesses que haveria de surgir anos mais tarde, com novas solicitações e exigências, para as quais a cidade teve que procurar encontrar respostas e oferta à altura.

Da vida social e cultural, não esqueço o ‘Comércio do Funchal’, um corajoso jornal que teve um director que haveria de tornar-se um dos grandes jornalistas portugueses, Vicente Jorge Silva, o café Apolo e o velho Golden Gate – a Esquina de Mundo como lhe chamou o escritor Ferreira de Castro, e o fascínio que me causaram homens como o Artur Andrade ou o Dr. António Aragão e o Fernando Nascimento. Sem esquecer a Maria Aurora, mulher de cultura e de coração cheio. Todos já desaparecidos. Mas não esquecidos.

Particularmente curioso para mim, que vinha de fora, eram certos termos – a corça (inimaginável meio de transporte), o horário (mais do que a hora a que as camionetas de passageiros passavam, o horário eram as próprias camionetas), as marcas (quando sempre lhes tinha chamado botões), o tratuário (o que os franceses fizeram ao nosso passeio), a abelhinha (quem diria que era o táxi). Foi nessa altura que aprendi que o ‘grade azoigou e foi a atupir na manta das tanarifas’.

Mais tarde, haveria ainda de perceber a letra do ‘Bailinho da Madeira’ – eu venho de lá tão longe/venho sempre à beira mar – os caminhos da ilha eram quase sempre à vista do mar e sem estradas nem transporte tudo era longe, e trago aqui estas couvinhas/ amanhã p’ro seu jantar – seria, suspeito, um espelho da colonia, regime de propriedade agrícola bem próprio da Idade Média que aqui se manteve até 1977.

O Funchal misturava o urbano e o campo, quintas e hortas, casas e bananeiras. E nos jardins era o verde a marcar presença, espreitando por entre prédios e ruas. Os automóveis eram raros e eu não deixava de pensar nas dificuldades de mobilidade para todos quantos tinham que entrar ou sair da baixa da cidade.

Os bordados, magníficos, mostravam-se nas casas da especialidade, os Camachos faziam moda. As ruas da parte baixa da cidade denunciavam profissões e usos – dos tanoeiros, do arsenal, da alfândega, dos ferreiros, do sabão, da carreira, do matadouro. E os belos letreiros das lojas (destaco com particular carinho dois já desaparecidos: a «Licoraria madeirense», uma preciosidade, e o «Comboio dos Cafés», intriga-me a origem de comboio, e um outro, ainda existente, «A pérola dos cafés») testemunhavam, a um tempo, a importância do comércio chamado tradicional e a organização social e urbana do Funchal. Comércio tradicional que contribuía para reunir pessoas, era não só local de compras como de cavaqueira, trocavam-se novidades e cumplicidades, o atendimento não se traduzia na ficha com o nº 72, antes dizia respeito à D. Maria ou ao Sr. Manuel. Era, afinal, um pouco a continuação da vida das praças e jardins, das esquinas e ruas.

O Funchal era A Cidade.

Vinha-se à Cidade com a solenidade de quem vinha ao centro do mundo. Com fato novo e emoções fortes. E o Funchal era uma cidade afectiva, com identidade, com marca, com alma. Com aquilo que a pode tornar competitiva em relação a outras cidades de dimensão semelhante.

Nos anos 60, o Funchal tinha uma carga urbana bastante equilibrada, de certo modo ainda concentrada à volta dos seus três núcleos históricos – Santa Maria, Sé e S. Pedro – a precisar de intervenções muito cuidadas de recuperação para não deixar perder o seu valor histórico e patrimonial.

A cidade foi crescendo montanha acima e aparecem as Zonas Altas – a imponente panorâmica de 360 graus do Pico dos Barcelos ia permitindo perceber melhor a expansão urbana. Numa enorme preocupação pelo ordenamento territorial, o presidente da câmara de então, Dr. Fernando Couto chama em 1972 o Arquitecto Rafael Botelho, um mestre do urbanismo, para elaborar o Plano Director da cidade.

Já vivi mais no Funchal que em qualquer outro sítio. Em 1980 viemos para cá por um ano; decorreram 41, desde que esta cidade se tornou o meu local de trabalho e de vida. Foram anos a aprender a senti-la e a gostar dela tanto mais que, no fundo, as nossas escolhas resultam verdadeiramente daquilo de que gostamos. Não creio que se goste do pai, do filho ou do marido porque sim. Os sentimentos não são espontâneos; resultam daquilo que somos capazes de fazer com eles. Se os alimentamos, se os regamos – frutificam; caso contrário esboroam-se – se é que alguma vez se puderam construir.

Com a cidade, acontece um pouco o mesmo, ainda que não haja reciprocidade – que ela não nos devolve sentimentos. Mas pode envolver-nos pela identidade, pela escala, pelo conjunto do edificado, pela harmonia, pela oferta cultural, pela surpresa do recanto, pelo encanto dos pormenores, pelas gentes, pelos amigos. E até pelos problemas e insuficiências.

Como acontece em todos os sistemas, também a cidade do Funchal sofreu oscilações no seu percurso. De há uns anos para cá, recomeçou a recuperar o orgulho de ser a primeira cidade atlântica e europeia a ser construída fora da Europa e está a percorrer um caminho para se tornar uma cidade que seja capaz de defender a sua identidade, com edifícios interessantes e outros realmente belos, com o património material e imaterial a ser recuperado. Uma cidade de ruas estreitas, montanhas e ribeiras que definem a sua topografia, mas que se consiga distribuir no território de forma cuidada e planeada. Uma cidade equilibrada e harmoniosa no diálogo entre as pessoas, o edificado e os espaços.

Uma cidade educadora e resiliente, condições essenciais para o conhecimento e o saber e para a capacidade de melhor se preparar para resistir aos desafios da sua orografia, das alterações climáticas e da sua situação de cidade de beira-água. Uma cidade que não quer esvaziar-se de gente nem do pequeno comércio tradicional e que apresenta apostas cada vez mais diversificadas, interessantes e importantes na cultura. Uma cidade solidária e com vontade e capacidade de proporcionar bem-estar às suas gentes. Uma cidade capital, a concentrar em si as diferenças e o seu sentimento de cidade ultra-periférica capaz de, ao mesmo tempo, se transformar numa cidade marítima, sustentável, turística e de qualidade, um motor do desenvolvimento económico regional.

E é este o meu Funchal. Hoje, a caminho de um melhor futuro.

Violante Saramago Matos

Gregorio Duvivier com o pai, Edgar Duvivier, subindo ao Monte no teleférico.

25 Agosto  2021

UMA VIAGEM À MADEIRA

Fui à Madeira pensando que encontraria o vinho, o bolo do caco, a estátua do Cristiano Ronaldo. Não sabia nada além disso. Peço perdão aos madeirenses. Encontrei uma ilha que nem parece uma ilha, de tantos encontros que proporciona – ao mesmo tempo em que nunca deixa de nos lembrar que é uma ilha, pela onipresença do mar, e da mata densa.

Fui na ocasião do Festival Literário da Madeira onde se reunia uma multidão de escritores de língua portuguesa. Alemães enchiam os hotéis à procura do clima ideal da Madeira, ingleses povoavam as tabernas à procura do seu vinho perfeito, enquanto os lusófonos faziam a festa como tão bem sabem fazer. A calçada de pedras portuguesas desenhando padrões geométricos me lembrou Copacabana – assim como os bares abertos até tarde, e o povo sempre disposto a uma boa conversa.

Fiz amigos com quem falo até hoje. Palestramos num belíssimo teatro centenário, mas o mais emocionante foi falar numa escola, bem no meio da ilha: descobri que os adolescentes assistiam Porta dos Fundos, e me encheu de emoção saber que nossos esquetes eram vistos ali, no meio do Atlântico. Lemos juntos crônicas do meu livro e em seguida trocamos ideia sobre humor e literatura.

“Nenhum homem é uma ilha”, nos ensinou John Donne. Se eu fosse uma ilha, queria ser a Madeira.

Gregorio Duvivier

© Vitorino Coragem | Alberto Manguel no Teatro Municipal Baltazar Dias.

4 Agosto  2021

IMAGINARY FUNCHAL

In the mid-seventies, when I was young and fancy-free, I set out with my friend and colleague Gianni Guadalupi to compile a Dictionary of Imaginary Places. We were both working at the publishing house of Franco Maria Ricci in Milan and, though there were periods of intense work, on many occasions we found ourselves between tasks and with plenty of time on our hands. One day, Gianni suggested that we write a Guide Bleue to Paul Féval’s Vampire City, a novel that he had just finished and very much enjoyed. Over several months, the project went from that one city to others, and then to fictional countries and even continents. For what ended up being several years, we explored chronicles of imaginary travel, contemporary and ancient fiction, places dreamed up in books in every language we could think of.

Going dutifully through Pliny’s Natural History, I came across several possible entries for our Dictionary: the Fortunate Islands, the Islands of the Blest, the islands of Capraria, Ninguaria and many others. Among these were the beautifully-named Purple Islands. I thought they would make an admirable entry but Gianni, rigorous as ever and much more savvy than I in matters geographical, dismissed the idea, saying that these islands were not imaginary and that what Pliny called the Purple Islands were either a cluster of islands off the coast of Morocco, or perhaps present-day Madeira. I was not convinced. Pliny describes marvels on these islands that must qualify as imaginary: sea monsters whose carcasses end up beached on the sandy shores, huge lizards that inhabit the many rock pools, a rich flora and fauna of coloured birds and fruit of every kind. Also, says Pliny, one of the islands is remarkable because of its trees resembling giant fennel from which the natives extract water of two colours: the black one is bitter, the brighter one is delectable. “And that,” Gianni pointed out, “shows that Pliny meant present-day Funchal, because in Portuguese, fennel is called funcho.”

And yet Funchal remained, at least in my mind, an imaginary place. As is often the case with places that we discover through literature, the place of solid earth and stone is less real than the one depicted on the page. London is all very well, but the real London is that of Dickens. And Lisbon owes its identity less to its winding streets and coloured houses than to a few lines by Eça de Queiroz and Pessoa. I visited Funchal a few years ago, but I remember that visit with far less intensity than the appearance of Funchal in a lurid thriller by Sax Rohmer, the creator of the mysterious Doctor Fu Manchu. In Moon of Madness (the title says it all) Rohmer describes the “transparent water” of Funchal as “turquoise blue” and exults in “all the glory of the Madeiran sunshine and the wonder of the flowers.” In the novel, in spite of the evil machinations of a certain villainous Da Cunha, the port of Funchal appears magical: “Nestling in a cleft, a volcanic chasm, its terraced roofs silvered by the crescent moon.” And Rohmer continues, enthralled: “Patches of colour, as though a Titan artist had thrown uncleaned palettes into the hollow, crowded upon and overlay the white walls. Green fronds peeped above pools of shadow. A beautiful auditorium, this town looked down upon the eternal drama of the sea.”

Maybe a visitor might recognize Funchal in these words; maybe not. And yet, in spite of the turgid style of Sax Rohmer, the evocation is not as much a foreign gaudy backdrop to the antics of English do-gooders, there is something in the description that is alluring because the inspiration must stem from a real impressive place. Shangri-La might be more memorable than Tibet, and El Dorado more vivid than Cuzco, but Tibet and Cuzco have to exist in a quiet corner of the planet for a poet or a novelist to change and magnify them in the imagination. The real Funchal is alive of course, but for me, as a reader, Funchal acted out on the stage of a book carries wonderful conviction and helps the other Funchal become “as large as life and twice as natural,” as the Messenger says of Alice in Through the Looking-Glass.

In the seventies, in Argentina, I met the novelist Manuel Mujica Lainez, a great traveller and imaginative novelist who enjoyed finding in history books plots for his fantastic stories. We became friends and one afternoon he told me that had the idea of writing a short fable set in the Cathedral of Funchal. He imagined a foreigner (Spanish in Mujica Lainez’s telling) who is visiting the city and wanders into the cool of the Cathedral where (I forget the circumstances) he is locked in by mistake for the night. Half awake and half asleep, the traveller sees the apostles, prophets and saints carved in the wooden choir of the Cathedral come to life and converse with each other, sharing wine and bananas served by sculpted cherubs. The ghosts of past visitors suddenly appear and among these Mujica Lainez imagined the ghost of Christopher Columbus, who lived in Funchal just before sailing for the New World. Columbus confesses to the saints his projected voyage to reach India; one of the prophets reveals to him, in appropriately veiled language, that he will not accomplish this voyage but another, a greater one. I don’t remember what ending Mujica Lainez had thought out for his fable, but I know that I told myself that one day I’d set foot in Funchal and look for those sculpted prophets. As far as I know, the story was never written.

Alberto Manguel,  Lisboa, 9 July 2021

Travessa. Para as novas gerações, será pouco mais do que uma expressão anódina que remete para uma rua estreita, ladeada de casas, algo que se aproxima muito de “beco”. Também invoca um suporte para as iguarias que nos chegam à mesa e, no léxico do quotidiano, pode indicar uma criança irrequieta, imprevisível, “da ponta da orelha”. Para as gerações mais antigas de madeirenses e porto-santenses – não necessariamente muito antigas –, Travessa é zona de passagem, hiato de mar entre a Madeira e o Porto Santo, lugar de epopeias de um povo na conquista diária de um território líquido que nos define, homens e mulheres da primeira manifestação portuguesa no Atlântico.

Os navegadores portugueses desembarcaram no Porto Santo em 1418. Se Colombo queria chegar à Índia pelo Ocidente, ao Porto Santo chegámos por acidente. Teria de ser assim, dizemos nós no século XXI, contaminados que estamos pelas odisseias, reais e míticas, de quem, perante a tormenta, sonha com solo firme. E o solo firme é sempre a ilha, aparição de terra que redime os náufragos. 

Os séculos, com grande contributo da arte, consolidaram a ilha como o lugar onde ocorre o paradoxo do drama, um pathos com travo a tragédia grega. Quando se diz, em sentido quase sempre figurado, que alguém morreu na praia, é nas olimpíadas dos náufragos que pensamos, no duelo desigual entre quem esbraceja num mar muito cheio e pede ao céu, esse abismo de cima, o milagre de uma praia. E essa praia não fica num continente. Não pode ficar num continente devido às proporções áureas dos milagres, uma preocupação permanente da Humanidade. Num deserto, o oásis – ou a visão alucinada de um oásis – é uma espécie de minúsculo lago que permite matar a sede. A um homem com sede, e à beira da inanição, basta uma gotícula de água para manter a esperança de viver até à próxima gotícula de água. Na hora da aflição, até o mais rico dos homens sonha com esmolas. É o encanto da escassez perante a danação. 

E Deus? Dizem os textos sagrados que Deus nunca se dirigiu a uma assembleia. Falou sempre a pessoas isoladas, sem testemunhas, que se encarregaram de difundir a Palavra. Chamou Abraão à parte, convocou Moisés – e só Moisés – para o cume do Monte Sinai, instruiu Noé, enviou em missão onírica o anjo Gabriel para informar Maria sobre a iminente gravidez. Tudo muito bem planeado e Eleitos a dedo. A Virgem também adoptou critérios semelhantes. Na Cova da Iria, Maria terá aparecido a três pastorinhos. Não trinta, não trezentos, não trinta mil. Três. Tudo muito comedido. Estas noções de grandeza – ou de parcimónia – também se aplicam à praia do náufrago, quase sempre deserta. Tem de ser pequena – não pode ter mais de 9km, está na constituição tácita dos Milagres -, tem de ser um detalhe, capricho da Natureza, improbabilidade absoluta que possibilita a continuidade da vida. Um acidente natural, o único acidente que se celebra. No caso específico destas ilhas, aqui deu à costa uma Europa que deitou carga ao mar para se salvar, séculos de pesadíssimas brumas medievais. Destas ilhas emergiu outra Europa. Hoje, quando nos embrenhamos nos mares nocturnos da Travessa, o farol do Ilhéu de Cima, no Porto Santo, não cumpre, somente, a missão circunstancial de um farol como tantos outros. Aquele farol é uma instalação artística permanente, a memória de uma Europa que quis ver o Mundo por inteiro, uma Europa com visão 360 sobre o planeta e sobre a espécie. 

Nem tudo correu bem desde então. Pior, muita coisa correu mal e continua a correr mal. Nas utopias e distopias, os projectos de reinvenção da Humanidade acontecem quase sempre nas ilhas, um laboratório natural para tentar de novo. Thomas More situou a sua Utopia numa ilha, Aldous Huxley encerra o seu  Admirável Mundo Novo num território insular. Michel Tournier coloca-nos perante um dilema: Sexta-feira ou vida selvagem? William Golding ensaia, em O Senhor das Moscas, uma nova fórmula de organização sociopolítica numa ilha deserta. Se, no início, aqueles jovens representam a esperança no Homem Novo – uma expressão ideológica mais tardia que se serve de um substrato literário –, no final não passam do Homem semi-velho. A ilha como ideal da pureza atinge um dos seus apogeus na própria Madeira. E sem recorrer a ficção. Segundo Gaspar Frutuoso, autor dos volumes Saudades da Terra, os primeiros madeirenses – crianças nascidas na ilha – chamavam-se Adão e Eva, um casal de gémeos, filhos de Gonçalo Aires, companheiro de Zarco, e de Isabel Ferreira.

É um facto histórico que diz muito sobre o modo como aqueles pioneiros olhavam para a Madeira: o reinício da Humanidade. O ideal. A realidade é outra coisa, mas o ideal abastece-se de esperança. Na perspectiva do crente, os madeirense e porto-santenses descendem duplamente de Adão e Eva.

O próprio Ulisses acaba por corporizar o ideário de um homem que só quer ser homem em casa, entre os seus, na ilha de Ítaca. Quem morre na praia é Argos, um cão no qual Herberto Helder poderá ter pensado quando imaginou a Madeira como “uma ilha em forma de cão sentado com a cabeça inclinada para perscrutar o enigma da água. O cão tem as orelhas fitas porque recebe notícias do vento ao mesmo tempo que cheira e olha o mar. O cão está sentado no Atlântico.” Argos, o cão que sucumbe na praia ao reconhecer Ulisses – quando mais ninguém o reconhece após 20 anos de ausência –, nunca deixou de estar atento aos sinais do vento e do mar. Argos, o cão insular, também representa a espera, o tempo da espera que ritma a vida dos ilhéus. A odisseia não é exclusiva de quem viaja e erra até acertar. Quem (a)guarda vive outra odisseia, não menos longa, não menos dramática, não menos bela, não menos heróica. Que o diga Penélope, essa mulher insular cuja profunda humanidade levou o marido a rejeitar deusas e a imortalidade. Para quê viver para sempre se o verdadeiro Amor é para nunca mais?

E de esperança falamos quando invocamos a Travessa. De esperança, perícia, coragem e sacrifício, tudo o que nos molda enquanto povo capaz de se adaptar à hostilidade da orografia e do mar, um povo capaz de cultivar a terra até ao derradeiro milímetro que antecede o abismo, um povo ciente de que há sempre terra à vista. Nem que seja no fundo, mas “navegar é preciso”. Este espaço é um tributo a esses homens e mulheres que, há não muitas décadas, se aventuravam nos lendários carreireiros, como o Arriaga e o Maria Cristina, para manter viva a esperança de sermos humanos no “cantinho de céu”, um paraíso terreno. Se, nos tempos dos Descobrimentos, “quem quer passar além do Bojador / Tem de passar além da dor” (Fernando Pessoa), os madeirenses e porto-santenses faziam do nosso pessoalíssimo Bojador, a Travessa, um modo de existir  e persistir. 

Sejam bem-vindos à Travessa, um lugar de encontros para quem visitou o Funchal e a Região, mas também para quem nos tem nas contas do sonho. Senhoras e senhores, o destino é 2027. 

Vítor Sousa
Equipa de Missão Funchal 2027